Apesar
de expressivos avanços no combate à extrema pobreza, erradicar a
miséria do Brasil e transformá-lo num País de classe média será mais
complexo e demorado do que o discurso do governo sugere, segundo
especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
moradias mo Brasil |
Com a mudança, os mais pobres receberão repasse
complementar para que a renda per capita de suas famílias alcance ao
menos R$ 70 ao mês - patamar abaixo do qual são consideradas
extremamente pobres pelo governo. A alteração, diz o governo, permitirá
que 2,5 milhões de brasileiros se somem a 22 milhões de beneficiários do
Bolsa Família que ultrapassaram a linha da pobreza extrema nos últimos
dois anos.
Especialistas em políticas antipobreza ouvidos pela BBC Brasil aprovaram a expansão do programa, mas fazem ressalvas quanto à promessa do governo de erradicar a miséria.
Para Otaviano Canuto, vice-presidente da Rede de Redução
da Pobreza e Gerenciamento Econômico do Banco Mundial, o Bolsa Família -
carro-chefe dos programas de transferência de renda do governo - é
bastante eficiente e tem um custo relativamente baixo (0,5% do PIB
nacional).
Canuto diz que o plano e outros programas de
transferência de renda ajudam a explicar a melhora nos índices de
pobreza e desigualdade no Brasil na última década, ainda que, somados,
tenham tido peso menor do que a universalização da educação - "processo
que vem de antes do governo Lula" - e a evolução do mercado de trabalho,
com baixo desemprego e salários reais crescentes.
Apesar do progresso, estudiosos dizem que, mesmo que o
Cadastro Único passe a cobrir todos os brasileiros que hoje vivem na
pobreza, sempre haverá novas famílias que se tornarão miseráveis.
Há, ainda, questionamentos sobre o critério do governo
para definir a pobreza extrema - renda familiar per capita inferior a R$
70, baseado em conceito do Banco Mundial que define como miserável quem
vive com menos de US$ 1,25 por dia.
Adotado em junho de 2011 pelo governo, quando foi
lançado o plano Brasil Sem Miséria (guarda-chuva das políticas federais
voltadas aos mais pobres), o valor jamais foi reajustado. Se tivesse
acompanhado a inflação, hoje valeria R$ 76,58.
Em onze das 18 capitais monitoradas pelo Dieese
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos),
R$ 70 não garantem sequer a compra da parte de uma cesta básica
destinada a uma pessoa. Em São Paulo, seriam necessários R$ 95,41 para a
aquisição.
Em 2009, o então economista-chefe do Centro de Políticas
Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Neri, defendeu em artigo
que a linha de miséria no país fosse de R$ 144 por pessoa. Essa linha,
segundo o autor, que hoje preside o IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, órgão ligado à Presidência), atende necessidades
alimentares mínimas fixadas pela Organização Mundial da Saúde.
O economista Francisco Ferreira, também do Banco
Mundial, considera positivo que o Brasil tenha definido uma linha de
pobreza, mas afirma que o valor deveria ser ajustado ao menos de acordo
com a inflação e que está "muito baixo" para o país.
Segundo Ferreira, o Banco Mundial estabeleceu a linha de
miséria em US$ 1,25 ao dia para uniformizar seus estudos, mas cada país
deveria definir próprios critérios. "Não me parece adequado que o
Brasil adote a mesma linha aplicável a um país como o Haiti, por
exemplo."
Tiago Falcão, secretário de Superação da Pobreza Extrema
do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
reconhece que mesmo que o Bolsa Família chegue a todos os brasileiros
pobres sempre haverá novas famílias que cairão abaixo da linha da
miséria.
"Buscamos a superação da miséria do ponto de vista
estrutural, para que não existam brasileiros que não sejam atendidos por
nenhuma política pública. E estamos tentando encurtar o prazo de
resgate dos extremamente pobres."
merenda escolar |
"Era uma meta ambiciosa para o Brasil e, por outro lado, factível. Hoje consideramos que acertamos ao definir a linha de R$ 70".
O secretário diz, no entanto, que se trata de um piso de
"carências básicas" que, uma vez definido, poderá ser aumentado levando
em conta as disparidades regionais e o quão solidária a sociedade quer
ser com os mais pobres.
Para Alexandre Barbosa, professor de história econômica
do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o governo deveria levar em
conta outros critérios além da renda em sua definição de miséria. Em
2011, Barbosa coordenou um estudo do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento) intitulado "O Brasil Real: a desigualdade para
além dos indicadores".
O estudo, que contou com apoio da ONG britânica
Christian Aid, afirma que as políticas de transferência de renda
melhoraram a vida dos mais pobres, mas não alteraram a estrutura social
brasileira. Barbosa é especialmente crítico à ideia de que, com a
redução na pobreza, o Brasil está se tornando um país de classe média,
tese defendida pela presidente.
"Considerar classe média alguém que recebe entre um e
dois salários mínimos, que mora em zona urbana sem acesso a bens
culturais nem moradia decente, que leva três horas para se deslocar ao
trabalho? Essa é a classe trabalhadora que está sendo redefinida."
Para o professor, a transferência de renda deveria
integrar um conjunto mais amplo de ações do governo com foco na redução
da desigualdade. Entre as políticas que defende estão reduzir os
impostos indiretos sobre os mais pobres, fortalecer cooperativas e
agregar valor à produção industrial, para que os salários acompanhem os
ganhos em eficiência.
Falcão, do MDS, diz que o governo já tem atacado a
pobreza por vários ângulos. Segundo ele, o Cadastro Único - "uma
inovação em termos de política social ainda pouco compreendida no
Brasil" - revolucionou a formulação de políticas públicas para os mais
pobres.
O cadastro hoje inclui 23 milhões de famílias (ou cerca
de 100 milhões de pessoas, quase metade da população) e é atualizado a
cada dois anos com informações sobre sua situação socioeconômica.
Segundo o secretário, o cadastro tem orientado programas
federais de expansão do ensino integral, fortalecimento da agricultura
familiar e qualificação profissional, que passaram a atender
prioritariamente beneficiários do Bolsa Família.
Para Canuto, vice-presidente do Banco Mundial, manter o
Brasil numa trajetória de melhoria dos indicadores sociais não dependerá
apenas de políticas voltadas aos mais pobres. Ele diz que o "modelo
ultraexitoso" que permitiu a redução da pobreza na última década,
baseado no aumento do consumo doméstico e da massa salarial, está
próximo do limite.
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